Tag: Modernismo
-
Profundamente (Manuel Bandeira)
Foto: Michael Dantas/AFP Quando ontem adormeciNa noite de São JoãoHavia alegria e rumorEstrondos de bombas luzes de BengalaVozes, cantigas e risosAo pé das fogueiras acesas.No meio da noite desperteiNão ouvi mais vozes nem risosApenas balõesPassavam, errantesSilenciosamenteApenas de vez em quandoO ruído de um bondeCortava o silêncioComo um túnel.Onde estavam os que há poucoDançavamCantavamE riamAo pé…
-
Primeiro caderno do aluno de poesia
Pintura de Di Cavalcanti SenhorQue eu não fique nuncaComo esse velho inglêsAí do ladoQue dorme numa cadeiraÀ espera de visitas que não vêm (Oswald de Andrade) Poema extraído do livro Primeiro caderno do aluno de poesia de Oswald de Andrade.
-
Testamento (Manuel Bandeira)
O que não tenho e desejoÉ que melhor me enriquece.Tive uns dinheiros — perdi-os…Tive amores — esqueci-os.Mas no maior desesperoRezei: ganhei essa prece. Vi terras da minha terra.Por outras terras andei.Mas o que ficou marcadoNo meu olhar fatigado,Foram terras que inventei. Gosto muito de crianças:Não tive um filho de meu.Um filho!… Não foi de jeito…Mas…
-
SENTIMENTO DO MUNDO (Drummond)
Sentimento do Mundo Tenho apenas duas mãose o sentimento do mundo,mas estou cheio de escravos,minhas lembranças escorreme o corpo transigena confluência do amor. Quando me levantar, o céuestará morto e saqueado,eu mesmo estarei morto,morto meu desejo, mortoo pântano sem acordes. Os camaradas não disseramque havia uma guerrae era necessáriotrazer fogo e alimento.Sinto-me disperso,anterior a fronteiras,humildemente…
-
Resíduo (Drummond)
Fotografia: Carlos Drummond e sua filha Maria Julieta de Andrade. De tudo ficou um poucoDo meu medo. Do teu asco.Dos gritos gagos. Da rosaficou um pouco.Ficou um pouco de luzcaptada no chapéu.Nos olhos do rufiãode ternura ficou um pouco(muito pouco).Pouco ficou deste póde que teu branco sapatose cobriu. Ficaram poucasroupas, poucos véus rotospouco, pouco, muito…
-
Congresso Internacional do Medo (Drummond)
Pintura de Ljuba Adanja 2002 Provisoriamente não cantaremos o amor,que se refugiou mais abaixo dos subterrâneos.Cantaremos o medo, que estereliza os abraços,não cantaremos o ódio, porque este não existe,existe apenas o medo, nosso pai e nosso companheiro,o medo grande dos sertões, dos mares, dos desertos,o medo dos soldados, o medo das mães, o medo das…
-
AULA DE PORTUGUÊS (DRUMMOND)
Drummond A linguagemna ponta da língua,tão fácil de falare de entender. A linguagemna superfície estrelada de letras,sabe lá o que ela quer dizer?Professor Carlos Góis, ele é quem sabe,e vai desmatandoo amazonas de minha ignorância.Figuras de gramática, esquipáticas,atropelam-me, aturdem-me, seqüestram-me. Já esqueci a língua em que comia,em que pedia para ir lá fora,em que levava…
-
O SEU SANTO NOME (Drummond)
Não facilite com a palavra amor.Não a jogue no espaço, bolha de sabão.Não se inebrie com o seu engalanado som.Não a empregue sem razão acima de toda razão (e é raro).Não brinque, não experimente, não cometa a loucura sem remissãode espalhar aos quatro ventos do mundo essa palavraque é toda sigilo e nudez, perfeição e…
-
O ano passado (Drummond)
Drummond O ano passado não passou,continua incessantemente.Em vão marco novos encontros.Todos são encontros passados. As ruas, sempre do ano passado,e as pessoas, também as mesmas,com iguais gestos e falas.O céu tem exatamentesabidos tons de amanhecer,de sol pleno, de descambarcomo no repetidíssimo ano passado.Embora sepultos, os mortos do ano passadosepultam-se todos os dias.Escuto os medos, conto…
-
Erro de português (Oswald de Andrade)
O Descobrimento do Brasil por Cândido Portinari Erro de português Quando o português chegouDebaixo duma bruta chuvaVestiu o índioQue pena! Fosse uma manhã de solO índio tinha despidoO português— Oswald de Andrade